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Cemitério dos Prazeres

A ideia de fazer uma visita ao Cemitério dos Prazeres é antiga. Surgiu num outro tempo, num outro espaço, mas por circunstâncias várias nunca se concretizou. Só hoje, e no âmbito deste “Círculo do Livre Arbítrio” - CLA, é que vê finalmente a sua concretização. À priori, a perspectiva de efectuar uma tal visita, como se de uma espécie de “turismo cemiterial” se tratasse, poderá parecer estranha ou suscitar até alguma repulsa. Por questões de sensibilidade pessoal, de pertença a alguma confissão religiosa, ou outras, a ideia de passar uma manhã a passear entre criptas e jazigos habitados por cadáveres, poderá não ser apelativa. Já bem basta, dirão alguns, quando forçosamente a nossa pessoa tiver que estar presente como personagem principal. No entanto, e deixando de parte estas questões, o Cemitério dos Prazeres e os inúmeros jazigos que nele se encontram, são uma fonte de profunda riqueza cultural, histórica e arquitectónica. À semelhança de outros cemitérios emblemáticos por esse mundo fora, como o antigo cemitério judeu de Praga ou o cemitério nacional de Arlington em Washington, o Cemitério dos Prazeres, consta dos roteiros turisticos internacionais e é, sem sombra de dúvida, o mais rico e grandioso de todos eles.

A abordagem ao Cemitério dos Prazeres pode ser efectuada sob vários ângulos ou perspectivas como se pode ver nas diversas rotas ou percursos que aqui se organizam. Temos a rota dos “Símbolos profissionais”, dos “Grandes homens”, da “Heráldica”, da “Estatuária”, e a “Rota maçónica”, que entre outras são algumas das opções que fazem deste espaço um verdadeiro “museu a céu aberto”, espelho da política, dos hábitos, ideias e costumes da sociedade portuguesa dos últimos duzentos anos. Percorrer o Cemitério dos Prazeres é entrar num espaço mágico, longe do bulício da vida e da cidade, numa atmosfera própria, rodeado da maior aglomeração de ciprestes da Península Ibérica, tendo o Tejo como pano de fundo. Neste espaço, neste ”Koimétêrion” (do Grego), neste “lugar para dormir”, somos convidados à interioridade, ao silêncio e ao confronto com as angústias e os mistérios da morte e necessariamente também da vida.

A arquitectura dos jazigos, as figuras e os símbolos que ostentam, reflectem as várias sensibilidades e as diferentes crenças face a esse grande e último mistério que é a morte. Desde as visões mais canónicas até ás mais idiossincráticas ou até herméticas, tudo se pode encontrar espelhado nestas moradas, nestes edifícios desta cidade dos mortos. Ela é o reflexo da outra cidade, a dos vivos que existe para lá dos muros deste cemitério. Aqueles que viveram uma vida intensa, que disfrutaram de poder, dinheiro, influências e prestígio, os que construíram os seus “palácios em vida”, também aqui erigiram os seus “palácios de morte”. Os que lá fora, na cidade dos vivos, viram os seus bustos ornamentarem as rotundas, as praças e os lugares mais emblemáticos dos espaços públicos, igualmente aqui ocupam lugares de destaque nas ruas mais centrais ou nas rotundas mais importantes. Ao invés, outros há que também possuidores de grandes obras e feitos preferiram a humildade, o recato à ostentação e assim na morte, também, à sua maneira, permaneceram iguais a si próprios. Podemos encontrar aqui de tudo um pouco e afirmar, de modo genérico, que “assim como em vida assim é na morte”.

Nesta viagem, neste deambular durante esta manhã pelo Cemitério dos Prazeres, lançamo-vos o desafio de descodificar o discurso gravado na pedra. Mais do que olhar para os símbolos, para as imagens e abordá-los, do ponto de vista formal, adjectivando-os como sendo bonitos, bizarros, ou harmoniosos, interessa subjectivá-los. Os objectos, as imagens não podem ser tornados surdos, cegos ou mudos e olharmos para eles apenas segundo a experiência sensorial que despertam em nós. Eles foram criados por alguém, num certo contexto e comunicam-nos qualquer coisa, sendo precisamente isso que importa perceber. Para a filosofia dos Gregos, o símbolo ou a imagem tinham sempre na sua génese uma idéia e era só após um processo de investimento ou vitalização que se tornava possivel a sua representação, plasmando-se em imagens ou símbolos susceptíveis de serem interpretados. A própria etimologia da palavra imagem a isso faz referência pois que deriva do latim, “imago” (Icones do Grego) que significa “...algo que age de dentro”. É pois esta tarefa inversa que nos propomos aqui encetar. Mais do que olhar para os símbolos manifestos, para a sua forma, interessará desconstruí-los, descrevê-los, contextualizá-los para em seguida se poderem interpretar. Só os conheceremos verdadeiramente se formos capazes de mergulhar no seu discurso latente, no mundo das ideias que os originaram, pois caso contrário serão apenas meras silhuetas, reflexos ou sombras. Como dizia Platão: “Só participando da ideia, integrando-a, é que ela se tornará nossa”. O conhecimento verdadeiro, esta hermenêutica, implica necessariamente uma dialética ascendente até ao mundo das ideias. Tal só será possivel se outurgarmos ao símbolo o seu sentido absoluto e não um qualquer valor, que mais ou menos fantasiosamente, lhe queiramos emprestar em virtude da nossa visão limitada. Este constitui pois o nosso desafio, mas para o levarmos a bom porto, devemos aprender a ver, exercitar a descrição, contextualizar e só por fim passar à interpretação. Se seguirmos este método, desenvolveremos a capacidade de observar, ampliaremos a imaginação e eventualmente ascenderemos ao mundo das ideias, o que verdadeiramente nos permitirá tomar posse do significado intrínseco desses símbolos. Se a isso chegarmos, os jazigos que ao longo desta manhã iremos visitar tornar-se-ão vivos e estabelecerão connosco um verdadeiro discurso dialético. As pedras como que ganharão vida e contar-nos-ão a história de quem ali foi sepultado, da sua própria mundivisão e sensibilidade, e de como quiseram perpetuar a sua memória.

Que esta visita possa ser enriquecedora para cada um dos presentes.

O CLA

Lisboa, 5 de Março de 2016

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